sábado, 25 de junho de 2011

A lua e a lembrança

Na falta de sono para dormir eu escrevo, ponho no papel tudo o que me passa na cabeça, não importa o tempo, o que aconteceu ou, penso, vai acontecer. Hoje, olho o céu de São Paulo, surpreendentemente iluminado, adornado de estrelas cintilantes que realçam a beleza da deusa lua, lua que não me é estranha, imagino já tê-la visto em algum outro lugar, bem distante daqui, alguma noite no céu pernambucano.

Naquela madrugada, acordei aturdido. O galo do vizinho cantava em alta voz. Era ele quem me acordava todas as manhãs no seu primeiro canto, dizendo que chegara a hora de pegar no batente. Saltei da cama com disposição à beça, abri a janela na lateral direita de casa e olhei o céu todo claro. Na rua ao lado, dava para ver as árvores mais distantes. Já havia pássaros cantando e cachorros latindo. “Meu Deus, o dia amanheceu, perdi a hora”, desesperei. Em fração de minutos, tirei a roupa quentinha que me aconchegara durante aquela noite e pus o andrajo do trabalho: calças, camisa e boné malcheirosos, endurecidos pelo mel da cana queimada. Nem lembro se comi alguma coisa. Devo ter comido.

Saí correndo, descalço, pela “Rua Q da Olaria”, levando comigo apenas a foice, semi-encabada, bem firme na mão para intimidar os vira-latas que, àquela hora, não pensavam duas vezes para morder. Aqui-acolá, uma daquelas pedrinhas pontiagudas me espetava os pés, mas já estava acostumado com tudo e, portanto, não esmorecia.

Precisava passar na casa de Severino, companheiro de todos os dias, acordá-lo com algumas batidas na porta e em seguida pegar a estrada de barro que ia em direção do Engenho São Carlos. Mais alguns passos e lá estava eu, esmurrando a porta do colega. “Severino, Severino, olha a hora”. A mãe dele veio atender e tentou me advertir de que havia alguma coisa errada. Estava certa de que havia acabado de deitar. Perguntou, com cara de espanto, qual era a hora. “O dia já está amanhecendo”, respondi. “Fale para o Severino se apressar, senão não vamos encontrar mais eito para o trabalho”, acrescentei. Dois ovos fritos, distribuídos em dois pãezinhos, ambos jogados no fundo de uma sacola plástica, e o companheiro já estava na rua, a caminho do trabalho.

Seguimos pela rodagem ladeada pelo canavial. O silêncio era assustador. Nenhum assobio, nenhuma daquelas cantigas que ouvíamos todos os dias caminho a fora, normalmente em grande grupo. Comecei, então, a perceber que havia algo errado. Severino, pusilânime, questionou-me por que há mais de uma hora eu dissera à sua mãe que o dia estava amanhecendo e até o momento a noite persistia. Àquela altura do caminho, eu já estava entendendo o que acontecera, mas procurei não esclarecer o engano. Não queria assustá-lo, pois era ainda muito menino, e eu poderia ter sérios problemas com ele naquelas estradas perigosas.  

Enquanto caminhávamos, eu tentava distraí-lo inquirindo sobre seus sonhos. Disse-me que queria ser um grande jogador de futebol um dia, tornar-se famoso, ganhar muito dinheiro e casar com uma mulher bonita. Mas eu não conseguia dar a atenção devida ao que Severino dizia. Estava grilado com o acontecido. Por que o galo, que durante anos havia-me despertado pontualmente, deixou-se enganar pela lua? Por que os pássaros cantavam como se celebrassem os primeiros albores da manhã? Iludiram-se também com a luz da lua ou foram ludibriados pelo cantar do galo? E os cachorros, por que latiam àquela hora, uma vez que costumavam latir apenas ao amanhecer quando os primeiros trabalhadores começavam a passar?

Chegamos finalmente ao canavial, mas o dia nem sonhava em nascer. Depois de permanecermos sentados debaixo dos pés de macaíbas à beira da estrada, ouvimos vozes de pessoas que vinham em nossa direção. Eram moradores do Engenho São Carlos que voltavam de um baile no Camela-futebol-clube, certamente embriagados. Não seria nada seguro permanecermos ali.

Entramos, encolhidos, no canavial fechado, molhados pelo orvalho, e conversamos por mais algumas horas, até que ouvimos o tropel da multidão que descia a ladeira, aproximadamente um quilômetro à frente. Era o povo que todos os dias vinha à labuta conosco, agora sim iluminado pelos primeiros raios do sol. Alentado, olhei para o horizonte e mostrei a Severino, em tom de gozação, a luz frouxa do sol que começava a brilhar no céu daquele dia. A lua que enganou o galo, e os pássaros, e os cachorros, e a nós também tinha finalmente se escondido. Rimos muito. E passamos o dia contando aos colegas de trabalho o ocorrido.

Não muito tempo depois, larguei a vida no canavial e vim para São Paulo. Muitos anos já se passaram, e eu nunca mais tive notícia de Severino. Talvez ainda esteja trabalhando no canavial e more na mesma cidade, na mesma casa, acredito que um pouco mais cauteloso com o cantar do galo. Mas ele pode também ter realizado o seu grande sonho, tornando-se um jogador de futebol. Pensando bem, Severino era tão frágil que talvez nem esteja mais do lado de cá da existência. Mas, caso esteja, em qualquer lugar em que se encontrar, à luz desta mesma lua, deve lembrar exatamente o que eu estou lembrando agora.

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