quarta-feira, 16 de novembro de 2011

O que realmente importa


Rascunho de uma reflexão sobre a vida

Durante algum tempo prestando atendimento psicológico a pacientes de um grande hospital de São Paulo, o fenômeno que mais me chamou a atenção foi a frequência com que alguns assuntos apareciam na fala dos pacientes, dos quais destacaram-se os seguintes: família, lugar de origem e religiosidade. Normalmente deixávamos aquelas pessoas livres para falar do que desejassem e, entre um assunto e outro, elas acabavam resvalando para os temas acima referidos. Ainda que tentássemos focar outros assuntos, como trabalho, dinheiro, moda, etc, sempre falávamos à sombra de família, religião e origem.

Não era a simples citação desses temas pelos pacientes que me chamava a atenção, afinal de contas as pessoas, no dia- a-dia, fazem referência à família, à religiosidade e às suas origens, porém naqueles pacientes, limitados a um leito hospitalar, a fala se apresentava carregada de muita emoção, de significados bem definidos, denotando reflexões profundas sobre os assuntos que abordavam. Alguns deles, por exemplo, falavam da esposa e dos filhos como se houvessem descoberto, somente ali no hospital, um grande segredo: o de que a esposa e os filhos eram tudo o que tinham de mais importante na vida. Outros aludiam à terra de origem e citava os pais, irmãos e amigos distantes, numa fala tão carregada de nostalgia e emoção que pareciam nunca antes, fora do hospital, terem se apercebido da importância de suas raízes. Em referência à religiosidade, expressada na figura de Deus, não era diferente: pareceu-me que o momento de angústia aflora a fé, confere-lhe vida e cores tão fortes, diferente da maneira como ela é banalizada no cotidiano da vida das pessoas.

Enquanto atendia meus pacientes e ouvia cuidadosamente a fala deles, a hipótese que me campeava a cabeça era que a diferença que caracterizava suas palavras achava-se no campo da reflexão, instaurado pelas particularidades do ambiente hospitalar. Os indivíduos que atendi não passavam pelas coisas simplesmente, eles detinham e pensavam sobre as coisas.

Segundo a leitura fenomenológica de homem, na maioria das vezes somos impróprios e passamos pela vida de forma apressada, o que nos impossibilita de estar com as coisas e se apropriar delas. Fazemos uso das coisas  e nos relacionamos com muita gente, porém raramente refletimos sobre a importância  das pessoas e objetos de nossos relacionamentos. "Estar com" é "refletir sobre", apropriar-se (Forghieri, 2006).* À maneira normalmente irrefletida de vivenciar o mundo, Forghieri (2006) se refere como vivência imediata, enquanto que o jeito reflexivo de lançar o olhar sobre o mundo em nossa volta, a mesma autora chama de vivência racional, e afirma que o existir humano está sempre cheio de possibilidades e limites, ora pré-reflexiva ora racionalmente.

O que possibilita ao homem lançar o olhar de reflexão sobre o seu mundo circundante é a angústia (a angústia da falta, da perda, do vazio). Podemos ilustrar da seguinte maneira: o indivíduo entrou em casa e não olhou para a lâmpada acesa no teto, muito menos se deu conta da importância dela, o que só conseguiu fazer quando acabou de repente a luz elétrica. A escuridão da noite, que o impossibilitou de executar tantas tarefas importantes, o desconcertou, lançando-o num mal-estar existencial que o remeteu para a reflexão e, portanto, o fez apropriar-se da importância da lâmpada acesa. É a partir dessa leitura que compreendemos que, no geral, as pessoas vivem no automático (na inautenticidade), sem refletirem sobre a real importância dos bens disponíveis. Somente um rompimento brusco pode tirá-las do automático e desnudar a vida, com todas as suas nuances, submetida-a à reflexão (Forghieri, 2006).

Acidentes de percursos na vida de uma pessoa, como os casos que atendi no hospital (acidentes, atropelamento, diagnóstico de uma enfermidade, etc.) acabam por tirar o indivíduo de suas atividades rotineiras, principalmente o trabalho, lançando-o em um ambiente físico e psicológico que possibilita sérias reflexões sobre a vida e aquilo que realmente é importante para ele.  É quando se sobressaem as grandes questões da existência, que geralmente são sopitadas pelas ocupações próprias da sociedade contemporânea, e começam a aflorar os tesouros inestimáveis que estavam ali, bem perto de nós, o tempo todo, mas não demos conta do seu real valor. Mas agora, na propiciabilidade do ambiente hospitalar, a mente retoma, reavalia, ressignifica e atribui valores justos a quem é de direito. Por isso, o desejo daqueles pacientes de falar sobre a família, amigos, origens, religião ou... do que realmente importa.

*FORGHIERI, Y. C. Aconselhamento terapêutico, origens, fundamento e prática. São Paulo: Thomso Learning, 2006.

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