sexta-feira, 9 de março de 2012

IGUAIS E DIFERENTES

"Eu sou assim porque foi o único meio que encontrei de não sucumbir aos meus fantasmas. Quando que as pessoas vão entender isso?" L. R. Lima.
Os dois moravam no mesmo bairro, porém em situações bem diferentes. Um era dado ao álcool e outras drogas, meio que achou para lidar com as agruras da vida. O outro, religioso aplicado, buscava alívio na fé. Tinham origens bem parecidas, sofriam de males parecidos – ambos enfrentaram preconceito, discriminação e desprezo – todavia fizeram escolhas diferentes.

Escolhas distintas, caminhos distintos. Quase todos os dias, um metia-se num terno pomposo e, em direção à igreja, encontrava o outro assentado na calçada em frente ao rancho que o abrigava, quase sempre bêbado ou drogado. Às vezes, quando tinha oportunidade, o crente cumprimentava o bêbado com o polegar da mão direita, inquirindo se tudo ia bem. O outro lado também levantava o polegar direito afirmando que sim, que tudo estava bem.

Por que causas semelhantes remetem para caminhos tão opostos? Isso é o que nunca entendi. Um perdeu o pai em tenros dias, não teve a oportunidade de estudar, era de aparência sofrível, o que lhe causava não pouca revolta; revolta, aliás, exacerbada pelas mazelas sociais de uma sociedade preconceituosa. Subempregos, salário miserável, raríssimas oportunidades, depois desemprego, desrespeito, incompreensão e exclusão. Eis os principais fatores que o levaram à desgraça. Acredite-se ou não, são quase os mesmos fatores que levaram o outro a Deus.

A avidez de um pela igreja, na busca desesperada por consolo, rendeu-lhe uma posição assinalada na instituição eclesiástica, o que lhe exigiu comportamento cada vez mais sociável. A avidez do outro pelas drogas, também na busca insaciável por alívio, redeu-lhe maneiras cada vez mais anti-sociais, lançando-o num processo acelerado de degradação. Como se vê, tinham tudo em comum, mas eram totalmente diferentes.

Nas vezes em que o terno de um se encontrava com os farrapos do outro, este último não conseguia disfarçar o desconforto, a vergonha, o sentimento de inferioridade e o respeito que nutria por aquele que, segundo ele, tinha escolhido o caminho de Deus, protegido da Divindade. Na verdade, nutria verdadeira devoção pelo de terno. Acenava com a mão após baixar a cabeça e soltava um meio sorriso que revelava dentes mal cuidados. Quando a bebida o deixava mais exaltado, tinha coragem de pedir oração em seu favor.

Via o outro como um santo, a julgar pela escolha "certa" que fez,  incapaz de nutrir as mesmas paixões que ele nutria, de curtir as mesmas canções que ele curtia e de ser afetado pelos mesmos pensamentos e sentimentos que lhe afetavam. Estaria enganado? O "santo", não raramente, se admirava da liberdade dele, imaginava como seria soltar as amarras, despir-se da fantasia, deixar o palco e sentir a mesma adrenalina que corria no sangue do outro.

Uma noite, o santo que o esfarrapado via no de terno encontrou-se com o demônio que a comunidade do de terno via no esfarrapado. Ele estava jogado, maltrapilho, numa calçada, engolindo avidamente um copo de sei lá o quê, bêbado, drogado, e cantava, a plenos pulmões, uma canção do Raul Seixas que dizia "Eu sou a luz das estrelas/ Eu sou a cor do luar / Eu sou as coisas da vida / Eu sou o medo de amar..." Quando o crente se aproximou, ele estava terminando a parte que dizia: “Eu sou o medo do fraco, a força da imaginação, o blefe do jogador, eu...”  Ao perceber o outro, começou a diminuir o tom da voz até deixar a canção suspensa no ar, no último verso, e o olhou com olhar tímido e encurralado como que esperando uma censura, talvez um convite para visitar a igreja e mudar de vida. Aproximei-me mais, e estas palavras que saíram de minha boca quebraram quase um minuto de nosso silêncio: “Eu sou, eu fui, eu vou”, para completar a estrofe da canção. Ele sorriu condescendentemente. O seu sorriso parecia  denunciar aquela sua compreensão momentânea de que éramos mais parecidos do que ele imaginava. 

Segui meu caminho pensando nos complementos que faltavam aos verbos que encerravam a canção. É o quê? Foi o quê? Vai para onde? A canção termina com tudo em aberto, sem os complementos que os verbos exigem, aventando uma infinitude de possibilidades. Assim era eu. Assim era ele. Assim é todo mundo.

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