sábado, 7 de julho de 2012

Análise do cotidiano

Sobre ciência e bioética: o que respondi quando pediram minha opinião sobre o assunto a partir da cosmovisão cristã.

Há alguns meses, os brasileiros acompanharam o desenrolar de uma trama apresentada numa novela da Rede Globo, Fina Estampa.Tratava-se da história de um casal que não podia gerar filhos de maneira natural, porque o marido era estéril, problema que seria solucionado pelo “milagre” do avanço científico. Paulo (Dan Stulbach) era estéril, o que impedia a mulher, Esther (Julia Lemmertz), de realizar o sonho de ser mãe. Mas a médica Daniele Fraser (Renata Sorrah), especialista em fertilidade e dona de uma conceituada clínica de fertilização, ia mudar a vida do casal através da fertilização in vitro. O problema é que a médica usaria de meios considerados antiéticos pelo Código de Ética Médico, ao utilizar o material genético de seu irmão já morto e o óvulo doado à sua clínica pela namorada dele, o que resultaria em muita confusão entre as partes envolvidas.

A trama objetivava provocar uma reflexão na sociedade acerca da paternidade de crianças geradas a partir de sêmem e/ou óvulos de terceiros. E é um assunto que deve ser conhecido de toda a sociedade, a fim de que seja discutido por ela as implicações éticas da mesma. Mas nós sabemos que nem sempre a apresentação de um caso como o passado na novela da TV Globo gera, de fato, uma discussão e reflexão das massas, uma vez que se trata de algo que apela mais aos sentimentos do que à razão e, por conseguinte, desperta muitas fantasias nos telespectadores, principalmente naqueles que também se acham impossibilitados de ter filhos, levando-os a sonhar com as possibilidades de conseguir um dia, talvez desconsiderando todas as dificuldades de acesso a esses sofisticados recursos. Diga-se ainda que dificilmente conseguiremos, na avalanche de emoções que as cenas da novela provocam nos telespectadores, refletir sobre todas as implicações de uma gestação em que há a participação de pelo menos quatro pessoas envolvidas. Normalmente, na novela, tudo termina de forma perfeita, com as partes envolvidas satisfeitas e felizes, o que leva as pessoas a desconsiderarem que na vida real a coisa é bem diferente.

Há também o aspecto pretensamente messiânico da ciência, e essas cenas fazem alguns imaginar que os avanços científico-tecnológicos trarão a solução definitiva das angústias humanas, que tudo pode ser resolvido, o que, na realidade, não deixa de conter boa dose de exagero. Lembro-me de um comediante que, em entrevista, afirmou que vivemos em um mundo maravilhoso, porém as pessoas continuam descontentes.

Acredito que a história vivida pelas personagens é inspiradora e ensina muito sobre superação, pois há muitas pessoas vivendo a mesma situação e sonham com um milagre que pode ser também realizado pela ciência para conseguir a realização do sonho de ser mãe ou pai. Agora, se os exemplos de vida dos personagens podem ou não ser imitados por outros à luz da cosmovisão cristã, é muito difícil dar uma resposta objetiva e definitiva. Até porque a visão cristã de vida é inspirada na Bíblia Sagrada e esta foi produzida em um tempo tão distante, numa cultura e mundo tão diferentes que buscar sua orientação sobre assuntos tão atuais é muito difícil. O que eu acho é que nenhuma ação dessa natureza deve ser tomada sem uma reflexão profunda que possibilite uma visão ampla de todas as implicações envolvidas no processo, principalmente as questões que envolvem valores, religião e ética, por uma equipe multidisciplinar de saúde. Às vezes, resolve-se o problema da infertilidade à custa de feridas profundas nas relações e nas consciências.

Na novela, inicialmente, o marido que não podia dar um filho à mulher não aceitava de maneira nenhuma que sua esposa engravidasse por meio da fertilização in vitro. Sua resistência envolve uma série de fatores de um contexto sócio-cultural machista e preconceituoso. A insistência da esposa desembocou numa separação. Separada, a mulher leva a cabo o seu projeto, engravida e dá à luz a criança que, mais tarde, seria aceita pelo ex-parceiro da mãe, o que juntaria novamente o casal. Porém a doadora do óvulo passou a reivindicar seu direito de mãe. E fez isso porque, como já frisamos acima, a médica, numa atitude inquestionavelmente antiética, usou material genético de pessoas conhecidas. Então, como se ver, não se trata apenas do ato de usar material genético-reprodutor de outrem para realizar o sonho de ser mãe, há uma série de fatores ético-bio-psíquico-social envolvidos que podem criar um imbróglio de final imprevisto.

Outro aspecto que deve ser bem refletido é que o a concepção de ser humano aparece sendo tratada  comercialmente. Quem pode pagar pelo material do doador e pelos serviços do especialista negocia com o parceiro e leva o processo adiante. Dessa forma, a vida é tratada em de maneira coisificada e tem sua importância e dignidade reduzidas a utilidade do momento, depois são descartáveis.

Como já pontuamos supra, os acontecimentos se dão de maneira muito rápida atropelando a capacidade de absorvição e reflexão das pessoas, aliás, esses acontecimentos rápidos apelam mais aos aspectos emocionais dos indivíduos do que à razão, de sorte que somos afetados, mas não percebemos e, por vezes, nos pegamos defendendo idéias cujas implicações éticas sequer nos damos ao trabalho de examinar. Sabemos que as pessoas, independentemente de suas crenças e fé, são muito determinadas socialmente e, devido à velocidade com que as coisas acontecem, não há tempo suficiente para compararmos os novos valores e paradigmas sociais com a doutrina cristã que confessamos, sendo que, às vezes, as posições que tomamos de acordo com as nossas crenças, são tomadas automaticamente, quando esses conceitos já estão profundamente arraigados em nós. Mas isso é pouco. Precisamos refletir sobre os novos paradigmas a fim de tomarmos uma postura clara sobre as implicações éticas dos comportamentos sociais à luz da Palavra de Deus. Gosto muito da sacada do pensamento fenomenológico, segundo o qual as pessoas, naturalmente, não se permitem estar com as coisas, ou não se deixam refletir sobre elas. Para o principal proponente desse pensamento, Heidegger, passamos pela vida, coisas e fatos de forma apressada, ou seja, na impropriedade, de maneira que fazemos uso de tudo, mas não nos damos ao trabalho de refletir sobre. E isso talvez seja mesmo devido à velocidade com que as cosias acontecem em nossos dias.

É verdade que a trama da novela inspira um modo de vida elevado, com idéias promissoras relacionadas às muitas mazelas que desembocam nas angústias humanas, mas é bom estar atento ao fato de que as encenações sempre extrapolam a vida real. A novela apresentou o que já é possível fazer na vida real, mas omitiu todas as implicações de ordem burocrática, éticas e emocionais.
Por fim, podemos falar de tipos de reação à vida que se apresentam nos personagens envolvidos. De um lado aparece o egoísmo de um marido que não considerou em momento algum os sonhos maternos de uma mulher. Temos uma esposa idealista que levaria seu plano até as últimas conseqüências e uma médica inescrupulosamente pragmática que visava apenas o resultado do negócio. Todos esses procedimentos retratam muito bem reações que as pessoas, no geral, apresentam diante da vida, quase sempre influenciadas pelos poderosos formadores de opinião midiáticos.

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